quarta-feira, 22 de outubro de 2008

O CATADOR DE IPÊS

VIAJO PELO MUNDO À PROCURA
DAS FLORES DE IPÊS.
EM BREVE RETORNAREI COM AS
RAÍZES DE BRASÍLIA...

AUGUSTO RODRIGUES
(o criador de quero-queros)

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

BRASÍLIAS INVISÍVEIS XXVI

Brasília é um código genético que precisa ser decifrado. Suas partes de esfinge, leoa, loba-guará e carcará precisam ser desveladas. Acaso trouxes-te o mapa? Sei de sua metamorforma: a espiral. E sei que há vida em seu solo. Então, posso caminhar na extensão feminina de teu corpo e seguir as trilhas harmoniosas, as cercas-vivas com suas ânsias de exatidão e sedução, prendendo o andante em seus braços pernas mãos lábios. Brasília é um campo elísio de concentração: tudo se concentra no seu epicentro altiplano e central. Que espaço, que sensação deliciosa de maravilhar-me nas tuas cósmicósmiscas linhas horizontais. Cidade ideal, sob a fulva névoa solar, vejo o momento auroreal em que todos voltam para casa. A ida é sempre translação: o carteiro solitário ruma para o lago e imagina que na sua casa haverá notícias distantes; a secretária retorna, mulher-satélite, para o jantar à luz de vela porque a conta não foi paga; o jardineiro, tesoureiro dedálico das árvores condensadas, volta horas no tempo e encontra sua casa arrombada: levaram sua maior riqueza – o jornal nacional; e retornam no eterno retorno as Donas Marias para todas as partes do lago. Na ponte, por acaso, uma prostituta canta ópera, na outra ponte um pescador reza peixes; na outra, desenhada pelo amor de deus, meninos jogam pernas para o ar e imaginam imitar o mesmo movimento gingado sobre as águas do lago – pontes andam e fazem ritmo no andar. No silêncio da noite veloz vou para meu laboratório for windows e incansavelmente observo Brasília no microscópio: ― violácea, virulenta, nuclear.

BRASÍLIAS INVISÍVEIS XXV

Os traços com que Brasília me fala, revelam um grande livro. Suas tesouras redemunham uma infinidade de símbolos que fazem revelações apocalípticas. Em Brasília eu vi um corpo feminino se retorcer no ar, voar em vão e virar cortina de chuva sobre o parque da cidade. E vi sete prédios iguais tombados pela força do anti-tempo. E canto porque o instante rexiste: e o fogo nos eixos tremulará no ar de sal e guias. Sua concretude propiciará aos meus olhos uma força sensorial e aérea. Brinco na chuva no domingo do mundo fechado e danço vivaldiano com cada marca de faixa, com cada gato fugido, com todas as lesmas do jardim das delícias rodando em gramofones que tocam abre-asas. As estações de Brasílias são marcadas pelas cores das flores no alto das árvores. Seu corpo feminino é espaço, o deslimite da materialidade de tudo aquilo que se dissolve em gozo... não sei se paraíso perdido, não sei se inferno ou paço; não sei purgo ou se me passo. Mas certamente seu corpo-paisagem é um milagre moreno da multiplicação. Brasília é uma aparição. Quero morrer nestas vias, quero ser parte de suas vindas, de seus milagres. E quando o clarão róseo no céu matar minha memória e corromper para sempre tudo aquilo que escrevo e escrevo porque sou escravo do escrito, ouvirei os bandolins e violões dos últimos dias soprando o choro dos desesperados. Asas ritmadas, sangue eterno de Santa Cecília Meireles e a canção é mundo – mais nada. E quando ressuscitar, quero ressuscitar em Brasília para que meu eterno retorno se dê numa faixa de pedestres, num azulejo com pomba branca, na parede pastilhada do labirinto reto e inexato.

BRASÍLIAS INVISÍVEIS XXIV

Brasília é uma réplica de si mesma. Se multiplica para se esquecer e olvida tanto que todo dia ela se abre em flor no pátio central do planalto planejado. No tempo do nunca, mundo aqui era grotesco: esculturas-galhas dinossáuricas, retorcidas, pesadas, escuras, turvas, opressas, como se queimadas pelas eras. O concreto de Brasília é o magma? Seu chão conta histórias de jagunços, lutas sangrentas, julgamentos noites adentro e de cegos que nada guiavam. O solo de Brasília é o cavaquinho com suas notas curvas, retorcidas, motivadas e delineadas pelas linhas de ferro que fazem curvas inimagináveis. Retorcem-se ugolinas, cerradas, magmas para serem admiradas. Larvas leves, estatuadas. Estátuas intactas, vesperamente empoeiradas, como se admiradas pelas eras, pelos éteres, pelas musas da canção. Brasília duplicada: via de mão única para o centro solar e vulcânico de si mesma: pragmática, magmática, niemática.

XXIII

Brasília é uma surpresa. Na caminhada pela grama da ponta da asa, na página de jornal, nas andanças pela estação cinematográfica da 108, ao som das chuvas-de-outubro, das cigarras-de-primavera e dos bandolins-de-atmosfera: the cantos. Depois o metrô. Metrô de alumbramento diante de uma moça que lia perto do coração selvagem. E meu coração pequenino percorrendo Macabeu as ruas da Ceilândia... depois voltar e deixar que meu coração volte para o plano olhando planos, fazendo planos, sonhando planos literários - Dédalo: il miglior fabro. Surpresas proustianas na Viçosa. No fim de noite os pastéis lembram cantos de São Paulo e o caldo-de-cana lembram a infância cerradeira. Me abro em palimpsestos e recordo todas as vezes que cruzei a cidade em busca de saltos – o Itiquira é sempre maior! Na volta, a W3 é um colo norte e me canta cantigas de ninar... e Brasília me lê, no inusitado do presente, o presente da leitura. Brasília é cronicamente fecunda. Candangoiano, no meu ser-quase-nada, converso com ela, retino seus desenhos diários de capital de todos os pecados. Vejo nas linhas de minhas mãos os riscos da catedral. Vejo na janela de vidro as linhas drummondianas. Brasília é uma crônica planejada no curto espaço de amar.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

BRASÍLIAS INVISÍVEIS XXII

Brasília só tem um segredo: o medo de que todos os candangos partam, levando na bagagem a verdade e a vida. No plano, eles partiriam. Fora do plano elas pariram. Mas a rodoviária é apenas ponto de chegada. Ela não tem asas, ela tem âncoras. As pessoas aprofundam mais na âncora leste. Na pobreza, na fome, no tráfego e no tráfico elas encenam o teatro de vampiros. Na tela imensa que se abre diante do pé direito as torres gêmeas, as bacias de mambrino, os prédios verdes duplicados nas retinas empoeiradas enfumaçadas fatigadas – tudo cartão postal. Mas os cartões hoje não se enviam mais. Imóveis, fotografias de vozes que não viajam mais. O povo transita alheio e depressa. A rodoviária tem sete vidas e reúne as sete tribos que fugiram de Akhenaton: paraítas, paraibitas, maranhitas, piauítas, pernambistas, cearistas e bahitas. O êxodo de Brasília é sempre invertido. As pessoas quando fogem, vão para cá.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

BRASÍLIAS INVISÍVEIS XXI

Foi em Brasília. Eu passeava na w3 no meio da meia-noite. Bicos de seios, pernas de meias, cinturas de cintas ligas batiam na estrelas inumeráveis. Havia a promessa do lago. Os últimos ônibus transitavam lentos pegando os últimos passageiros da vida. Ônibus chamados desejo. Insone eu rezava para o Santo Padroeiro dos atravessadores e atravessei o eixão correndo e cantando legiões. Havia a promessa do lago. Minha solidão se multipicava nas linhas das quadras. Nas transparências dos blocos que anunciavam famílias inteiras na mais completa solidão. Fazia um calor e um vento de Goiás soprava no vento. A vida para mim era chegar no lago. E como não encontrava ninguém a não ser o doce vento goiano sentia em mim pulsar a fascinação dos blocos compridos, os autos sinceros acelerando para lugar algum, a voluptuosidade do calor, as moças bonitas do passado e mil pessoas diferentes que chagaram no lago antes de mim. Meu coração bateu planejado. Seguia o mapa da mão de Drummond, segurava uma página surrada do caderno cidades do correio Z. Meu olhos marejaram: sal, algas, seixos. A via acabou. O lago batia em meu peito. As árvores últimas. A cidade sou eu. Eu sou o ser capital. A cidade sou eu. Eu sou a crônica da cidade. Sou eu a cidade meu amor é você.

BRASÍLIAS INVISÍVEIS XX

A satélite mais próxima é a w3; a mais distante: Goiânia. Goiânia, Brasília, Eu – nascemos no mesmo lugar: Goiás. Depois veio o Papa e cortou esse mundo ao meio. O bico do papagaio ficou de um lado e as penas do outro. Agora essa porção de terras é uma porção de terras inventando memórias futuras. Um homem também inventa: o passado das porções de terra. Esse homem é uma Ilha! Mas ilha maior é Brasília. Ilha da realidade. Com seus prédios, suas vias rápidas, suas curvas agônicas e formas agostinianas que revelam a variedade na unidade. Nas asas revela-se para o céu. Uma figura perfeitíssima se exprime em foices. No plano, para os olhos do céu, a solidez e a intocabilidade martelar revelam espiritualmente triângulos versus triângulos. No traçado, espelhado céu, o corpo feminino e imenso de uma mulher barroca deita na faixa de pedestres e atrapalha o choro.

BRASÍLIAS INVISÍVEIS XIX

Nesta cidade as relações são acometidas por uma claridade insuportável. A luz adentra, com suas marcas e formas, os escombros dos sonhos com força devastadora... As sombras dos andaimes, os gritos da solda e o concreto escultural apocalipsam torres e passo. Daí o mau hábito de conversar com cachorros, fugir do elevador que carrega pessoas, disfarçar na caixinha do correio o tempo de partida do vizinho do lado. O apego à vida habitual transforma-se em apego à solidão compartilhada e todas as pessoas se amam no curto espaço de um encontro no estacionamento, no milimétrico abrir-fechar da porta do metrô, no ponto de observação do pôr-do-sol, no motel da candangolândia com muito amor. E quando toda raça humana fracassa, Brasília se inaugura todas as manhãs. Anuncia azulejos com pombas azuis de imensidão, cercas vivas de verde desenhado e reguado com águas de chuvas novas, paredes inteiras de canções de ninar e vidros transparentes dentro da noite veloz que anuncia a escuridão. Onde todos dormem, entre corredores gigantes e tesourinhas girantes, repousa a atmosfera das metamorfose. Eu olho da janela e sinto esse ar da noite fria... e tudo está em paz ás ás ás...

BRASÍLIAS INVISÍVEIS XVIII

O viajante que chega em Brasília avista longe longe longe o movimento de uma pedra sobre o lago. O resto são placas que indicam. Há muitas direções, muitas brasílias e uma só Capital Federal carinhosamente apelidada de Distrito Federal. As placas se confundem por exceção: Brasília a 71 km, plano piloto a um pouco menos. Brasília siga reto, gama vire à esquerda, novo gama não vire. Em Brasília: Km 0. De repente, o leitor de placas, depara-se com uma outra circunspecta: em Brasília não buzinamos. Todos dirigimos e nunca buzinamos. Em Brasília é proibido carroça... daí emplacaremos implacáveis as carroças e esses seres com hábitos de roça serão expulsos do paraíso planejado. O que é Brasília? Parafraseando Dom Bosco, emplacaria: se não me perguntam sei exatamente o que é; se me perguntam: Distrito Federal, capital, Palácio do Planalto Central - satélites, luz, balão. Brasília tem vias, tem avenidas poucas e a minha rua toda é inventada. Mandei colocar uma placa na minha rua ladrilhada: placa em branco para o povo inventar direções...

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

BRASÍLIAS INVISÍVEIS XVII

Casulo. Brasília nasceu de um casulo. Surgiu da terra-de-dentro. Grande sertão: silva. Nascida da generosidade das águas que correm para as areias sul e areias norte, da abundância das raízes e seus eixos e seixos milimetricamente monumentais, da fertilidade de tuas seivas de tuas chuvas adoráveis, da amabilidade do ventre mais que aberto e sua ânsia de historicidade. Brasília nasceu nos Goyazes: da terra desoladamente contadeira de estórias, cantadeira de stórias, contadora de gêneros, causadora de risadas, catadora de latinhas. Desta terra que se fez linhas retas, também brotou, partida ao meio, meio mundo, o barro insone das primeiras gotas de setembro. Nasceu também desta Terra goiandira, partida ao meio, Tocandira. Nesta terra plantando arquitetonicamente, tudo se dá. E as três terras na mesma terra, da mesma versão, inventaram cantigas de eras, antigas de rodas, anfisbenas de belas e parabelas de Ares. Desse casulo ao quadrado nasceu Brasília, Ilha de Ninfas e Centauros; desta terra fértil que se deixou desenhar geometrias, desta terra que se deu ao meio e deu-se à queda e foi ao céu nasceram: asas, versos, sopros, filhos...