terça-feira, 16 de dezembro de 2008

BRASÍLIAMAR XXVII

Brasília sempre certa. Mudo um móvel de lugar e mudo um eixo de direção para modificar sua feição. Mas cada mudança no plano indica uma nova direção em cada satélite-alfenim. E indico melodias. Quem vem da norte vai para sul e quem vem da 100 volta pra 900 e invento formas de me distrair da lógica de Brasília. E esbarro em alguém só pra pedir desculpas e aponto a mão para uma faixa só pra pedir um olhar e peço informações em cada quadra só pra me perder melhor no discurso da cidade. E troco um aceno nas 400 e saúdo o sol na 700 e descanso na sombra de uma mangueira das 200. Toda quadra é feminina. Das mangueiras da 16 eu gosto mais. E lanço um passarinho em pleno ar e conclamo uma gaivota sobre niemar e uma andorinha na leveza certeira dos trilhos que ela desenha no ar...

BRASÍLIAMAR XXVI

Brasília é minha velhice, faz parte de uma busca poética de muitos anos. As leituras me consumiram e a busca de um estilo me trouxeram até aqui. Conheci a Paris de Balzac, visitei a Dublin dos dublinenses e fiz minha professora de francês procurar no mapa a mais bela cidade da memória: Combray. Ela nunca achou e eu me perdi à procura da palavra perdida. Não quero me justificar, mas queria que meus poemas dissessem mais do que eu diria. Sou um cronista do absurdo e esqueço cada linha que psicografo. E digo menos porque a arquitetura oferece respostas. Brasília, eu sei, é esfinge é mulher tem mais pirâmides mais hieróglifos mais do mesmo e um nada que é para sempre. Nada pleno. Estou cansado de mim, dela não. Ela é minha feição, minha escolha que não escolhi. Para viver um grande amor basta descer aqui na rodoviária e procurar a moça deitada na grama. Daí é só planear planear planear e colher a rosa que nasceu do asfalto e oferecer para essa mulher do fim do mundo. Brasília: quer casar comigo?

BRASÍLIAMAR XXV

A biblioteca de Dulcina guarda papéis. A bibliotecária de Dulcina guarda personagens. O palco é dentro de nós. Eu invento cenas só pra disfarçar e grito no palco plano: eu sou Dioniso. Ninguém acredita. E saio fazendo mágicas pelos canteiros milimetricamente erigidos. As crianças. Os meninos jogam bola entre blocos e as meninas, desajeitadas com os bicos dos seios crescendo, andam de patins no eixo fechado. Domingo é dia de parque. Para ser feliz é preciso ter esse céu azul de Athosbulcão. E fazer desse azul uma imensidão e dos azulejos uma canção. Há um mundo bem melhor a ser feito por você é o mundo imenso que se faz todos os dias. E eu sinto uma falta daquela prosódia, daquela Medusa, daquela Molly Bloom do cerrado destilando terceiras intenções. Dulcina era tão linda de se admirar que andava nua por minha Brasília. E brinco com os filhos dela. Tão bacanas, tão cuidadosos, remexendo no seu baú reescritas e recordando o dia em que a mãe lhes ateou fogo. A biblioteca de Dulcina aguarda papéis. A bibliotecária sente sono, cochila na coxia, há uma gota de sangue cortando sua maquiagem. Ela sonha com o quinto ato.

BRASÍLIAMAR XVIII (BAHIAMAR)

Quando os navios candangos aportaram na baía de todos os lagos um grito enorme rompeu do planalto fluminense. E os santos machucados, que apanharam da intolerância, ainda sobrevivem de oferendas escultórias – em Brasília falta um feriado baiano! E dos navios desceram Noé, Javé, Pelé e Zé-Prequeté. E foi uma mistura: calango com macaca, avestruz com urubu-rei caititu com caitité. Babalorixá com Nossa Senhora, Universal com Tranca-Rua, Judas com Joaquim da Silva Xavier. Não permita deus que eu morra. Permita Deus que eu morra de samba de cachaça e de folia. Brasília era um redemoinho. Nonada a poeira inventava o povo. Osturdia eu vi um. Era uma beleza: impávido, colosso, pai gentil. Ele me viu. Olhos nos olhos. Existiu? Penso logo e me benzo três vezes. Mas se ergue do remoinho a clava forte eu incorporo todos os santos, todos os bichos, todas as antenas de tv. E o redemunho me invadiu e me rodou no horário da voz iluminado ao sol da nova cidade. Era um odeon que tocava gramofone: sambabom, sambaixada, sambhaía, sambatuque, sambrasília.

BRASÍLIAMAR XV (A Pedro Maia

Disciplina é liberdade. Placa monumental: “Tamos de ovário cheio de violência”. Desse idílio unilateral nasceu o rock brasiliense e seus coelhinhos de pelúcia. Da força do tambor com o risco da guitarra fez-se aborto elétrico. Do tom baixo do contra-baixo com a gaita que grita noturna e passeia pela madrugada fez-se camisa de vênus ou de força. Desse idílio unilateral nasceu o choro e seus acordes rendrixianos rodrixianos freudianos. E je ne voudrais rapellais que eu minto também. Eu mito também. Sou nada, nadica de nada, menos noves fora zero de mim. O coisinha. Coisinha ruim. E quando espero o som da capital inicial, distraído, churrasquinho de gato, guaraná cajuína, quandéfé ouço uma voz rouca cortando a noite: na favela, no senado, no araguaia... que país é este? Que país é este? Ideologia é liberdade... Um menino de 4 anos cantando rock, brincando rock como se brinca de pião finca maré pedrinha e bolhas de sabão. Meninos eu vi.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

BRASÍLIAMAR XXIV (A Patrícia Arruda)

Grava-me em teu corpo cidade de mais de um milhão de carros. Como um selo em teu coração, como um selo em teu seio quero te amar porque o amor é forte e minha sorte é jogar nos seus braços a minha Sorte. Cruel é o abismo da paixão, suas chamas são de areia e suas faíscas recordam o magma de rosa, as pragmas rexiduais dumond. Brasília do fim do mundo onde é seu começo onde é seu nunca? Ser expulso de Brasília representa estar cego e ser guiado por um louco. O amor aqui não é uma metáfora é uma compulsão é uma doença que bate na aorta. Por isso eu escrevo com versos roubados de vários poemas capitais. De tragédias que afirmam que Brasília é uma prisão. Então Brasília é um campo de concentração. Um mundo um campo um jardim em que cada escolha é uma prisão e cada prisão força o prisioneiro a estar concentrado naquela visão. Quem vem vindo do deserto? Quem chega a esta hora em Brasília. O amante. Entra, senta, toma cachaça, acha graça vai dormir. Brasília apaga seu cigarro, ri olhando a abóbada estrelada, balança a cabeça e deita em seu lençol de cetim. Brasília dá um beijo em mim e eu começo a sonhar com um lago que paira no ar, que corre riverrum pro mar, que voavoa na direção de niemar...

BRASÍLIAMAR XXIII (A Renato Cordeiro Gomes)

Eu moro em uma asa. Já morei em jardins, já dormi na rua, já fugi de campo de futebol. Mas habito uma asa e esta asa é uma norte. Um dia eu vou em uma festa no céu: vai ser uma festa. Resta agora saber desvendar diante dos olhos do dia-a-dia algum traço oculto de felicidade naquilo que ainda não conheço. Habitar as cidades-satélites para colher versos de abril, flores de julho, marcas de futuro. Quero penetrar cada satélite e fazer, girante e dançante como as notas de uma sanfona kalunga, o cosmos literário que persigo de minha janela. O satélite mais belo de Brasília é Bahia. Bahia de todos os povos: planejadamente casual. Da minha janela-norte sopra um vento que me liga a cada habitante das fronteiras retas. E esse vento sopra e volta a soprar e se estende entre pontos que minhas retinas pressentem e vejo desenhando-se rapidamente os mais belos poemas que colhi cada vez que deixei o plano e plantei meus pés em cidades que fazem parte da cidade e que se enformam como cidades capitais: Brasília, todas as Brasílias.

BRASÍLIAMAR XXII

Cada satélite que surge se multiplica. Sob o limbo, ao som de Zaratustra, ela se fecunda e deixa crescerem os ramos espiralados. Os cidadãos, enquanto o azul nasce do rosaurora, ainda sonolentos, não percebem que quando ela deixa de ser uma chegada passa a conter uma satelidade. A semente, em todo seu esplendor, contém a urbs, contém a metrópole, contém o mundo e contém as galáxias e contém viajantes espaciais em suas naves que não sei dizer... não são humanas e não podem ser ditas por palavras humanas porque elas são próprias, alheias a tudo que é humano, menos Brasília. Digo mal, mas digo de ouvir dizer: dizem ― o universo existe e Brasília está no seu centro.

BRASÍLIAMAR XXI

Brasília é o Castelo. Um processo kafkiano de ocupação de espaços. Pelas suas vias rápidas se estendem, se encontram se confundem se entendem os transeuntes e suas caretagens suas corretagens suas legiões e coros de nostradamus. Fronteiras. O fantástico é obtido dissecando-se o real: é o real que dá o conteúdo simbólico e torna-se fantástico aos olhos da realidade. Em Brasília, o fantástico atinge uma expressão total: a criação. E basta perguntar a uma criança qual é o sentido do plano, que ela, com seu jeito de mostrar o óbvio e a surpresa do absurdo da pergunta, responde com os braços abertos e a cara mais séria: Brasília está em todos os lugares, ué!

BRASÍLIAMAR XX

Brasília é a única capital tropical em que o sentido de sua construção está refletido no seu futuro. Ela é quinhentista invertida e é secular por ser inventada. A tradição de Brasília é buscar sentido para a vida. Seu plano foi copiado de um rascunho de roteiro. Um cineasta que filmava lá do alto, distraído de sua criação, deixou cair caindo papéis avulsos, fotogramas de beijos, marcas de batom, olhos azuis de divas...

BRASÍLIAMAR XIX

Sua forma de céu permite que os moradores se comparem aos anjos. Eles morrem de raiva. Mas anjo não morre. Anjo peca? Anjo cai? Por vezes céu e centro se confundem e são o mesmo. O azul-ilusório, do dia, e o céu negro-escurecido da noite, das estrelas, dos mapas celestiais determinam os destinos, as direções das asas das rodas das catedrais. O céu determina o destino das pessoas e as pessoas determinam o entusiasmo do aplauso do maior espetáculo da terra: malabares no sinal, cristais nas árvores, notas musicais da chuva, flores de ipê-furta-cor correndo correntezas de enxurradas. Brasília é um céu amplo, baixo, alado e bonito por natureza. Brasília, cidade maravilhosa.

BRASÍLIAMAR XVII

Brasília é uma ampulheta. Despeja a areia, grão a grão, despeja cada pessoa no seu exato lugar. Brasília é uma cidade que recebe as pessoas. Todo aquele que já atirou uma pedra, chega na cidade, pega a pedra do chão e a coloca no seu exato lugar. Todo aquele que veio pelo caminho do meio e viu que no meio do caminho tinha uma cidade descansou as retinas. As pedras de Brasília detestam não estar dentro do plano. As pedras desta terra têm manias, têm águas de mar e amam os sabiás. Brasília é uma ampulheta em que cada tempo é uma pedra que vai de uma asa para outra, cruzando o eixo, cruzando o ponto central, cruzando o marco inicial demarcado por uma antena de tv.

BRASÍLIAMAR XVI

Toda cidade é aberta? Quando fujo de Brasília ela me persegue como numa cena de filme noir. Todos os dias eu assisto um capítulo dessa vontade de se fundar. A história se repete todos os dias porque fujo todos os dias de Brasília. Amo tanto Brasília que paro, olho e passo. A vida é assim: contínua e trêmula como água de lago quando recebe sopros de brisa, cantos de arcanjos, suspiros de um Deus que não sabe mais o que inventar. O efêmero: o subterrâneo, o magma, a argila. Em Brasília não tem enterro. Os mortos passeiam e trocam de covas e lançam flores no lago. Ouvi dizer que existe um cemitério de elefantes. Mas ninguém sabe. Não vamos contar. Este será o meu segredo com você. Tu e eu pelos jardins das palavras jamais. A vida é meu teatro, mas Godot chegará um dia, atrasado como sempre, e eu estarei depois. Brasília se lembrará de mim como seu mais fiel amante, como seu mais devotado Bentinho, como seu mais irascível e luciferino anjo-da-guarda. Ela cantará meus versos, achados e perdidos em um sebo. Ela estará com uma legião no gramado central. Moças bonitas de se namorar cantarão lá lá lá lá lálálálau. Ainda é cedo... E quando o sol chegar e todas as portas estiverem acesas e todos as luzes abertas ela dirá um único verso, um único nome:

BRASÍLIAMAR XIV

O meu coração continua carregando um aperto no coração. Uma vontade de chorar, uma vontade de chorar. Meninos não choram e sigo pra estação. Sobrepostas, as Brasílias renovam-se geograficamente, transformam-se historicamente, reinventam tradições. Em Brasília deveria ser proibido museu. Toda tela, toda escultura, todo poema é menor. Minha poesia é menor. O meu nome mais menor. Ao falar de uma Brasília, talvez eu fale de todas, ou apenas de uma que não a do nome. Sinto vontade de correr e olho pro céu e digo bem alto: Brasília, Clarice, Clarabela!

BRASÍLIAMAR XIII

O reflexo, silencioso, mas cúmplice, força Brasília, caverna contraditória, a olhar nos olhos de si mesma. Ao homem resta refletir sobre esse mundo em seus olhos, ou contemplar fascinado a própria ausência. Brasília inveja os homens simplesmente porque eles têm olhos. Esses olhos que vêem, refletem e procuram o justo no visível, no que é aparente, apesar da obscuridade, ou no que se multiplica, apesar da transparência. As retinas, com sua luz ilimitada, refletem a grande iluminação do mundo e de seus seres iluminados que interpretam a capital. Todo pecado é capital? Digo nada e disfarço. A vida consiste em duas asas. Dois lados, divididos por pálpebras ou simplesmente por uma folha: de papel, de seda, de clorofila. A cidade iluminada pelo sol do velho céu faz sua fotossíntese todas as manhãs e admira-se nua nos olhos de cada ser.

BRASÍLIAMAR XII

Brasílias sobrepostas refletem-se em espelhos que apontam para uma sucessão de detalhes de detalhes de detalhes. O resto é história. A cada nova geração os sonhos se repetem. Repetem-se nos jeitos de deitar, nas formas de olhar, na pressa almoçada de todos os dias, na solidão da tela de um computador. Os habitantes desempenham seus papéis aos olhos da cidade. Tudo acontece exatamente no plano. Brasília é uma sucessão de tempos no cerrado, de ilusões alternadamente encontradas e perdidas, cerradas e perdidas, amadas e amanhecidas...

BRASÍLIAMAR XI

A delicadeza da vida frente à morte é semelhante à delicadeza das ninfas ao banho. Aqui, nesta cidade, há prédios que tem fontes. Cada fonte tem a sua musa e cada musa entoa uma canção de memória. A felicidade é a água. Ela é também um parque-de-diversões que flui aos olhos de uma criança. Mas resta sempre o desejo (coraçãomente) de apontar verticalmente para os detalhes que delineiam a vida. Daí existe a possibilidade de ir para a cidade transparente, ou ao fundo do poço. Às vezes o lago é um precipício, outras vezes ele é um semar senfim. Nado no lago à noite e ele me puxa pra dentro da noite veloz. Nadar no lago é nadar na terra com todos os corpos flutuando sobre mim. Brasília está contida no lago, sua verdadeira arquitetura reside nos escombros do fundo do mundo: oceânica, titânica, atlândida, ela um dia será descoberta pelas naus. E muita gente vai contar essa história pelos campos pelas ruas pelas flores construções.

BRASÍLIAMAR X

Há quadras que crescem para cima. Vias que correm para baixo. Uma paisagem invisível condiciona a diferença entre os homens e as diferenças entre os deuses. Uns vivem acima, outros abaixo. Alguns são plenos, outros, penam no plenário. Fazer versos é como construir cidades: uma palavra alicerça a outra e o concreto só pode ser admirado depois do ponto final. O mensageiro do vento, o lustre, o céu: estalactites arrancadas de mim.

BRASÍLIAMAR IX

Qual é o eixo que divide as asas? Quais asas voam na minha imaginação e se desdobram na mente? Como é bom dirigir pelas retas de Brasília e não pensar em nada. A língua de Brasília é guaráceítaguáilhá. As pessoas em Brasília não usam palavras, apontam para as coisas e cada um segue sua direção. E ela começa a existir justamente porque não necessita de um passado: ela é apenas êxodo. Apenas está presente e pressente a minha chegada toda vez que a olho da asa do avião. Brasília é a única asa que voa do chão e cabe aqui na palma da minha mão!

BRASÍLIAMAR VIII

Um dia dei um papel de pão pra Brasília desenhar. Ela fez uma plano-piloto. A cidade era exatamente ela: narcisa, singela, fractal. Pude perceber nessas imagens duplicadas e reduplicadas através do espelho que Brasília tinha exatamente uma idéia contrária àquela de sua fundação. E ela apenas se repetia para fixar na minha mente aquilo que ela guardava de mais secreto. Depois guardei o papel de pão. Distribuí o pão entre os carroceiros (proibidos e coibidos por placas sonoras) e fui olhar o lago. Minha imagem não se refletia nas águas. Tudo era azul: o lago, o tempo, o concreto.

BRASÍLIAMAR VII (Para Áttila Maia)

Brasília diz tudo que devo escrever. Ela é uma cidade autoral: Brasília de todos os santos. E repito os discursos de cada pessoa. Os hábitos são símbolos e toda vez que escrevo um símbolo procuro decifrá-lo. Mas logo esqueço e vou jogar bolinhas de gude. É uma luta vã. Daí, deito na faixa e espero o lobo-guará atravessar. Com o ouvido no chão, uma história. Mas essa língua, essa prosódia, essa via que fala deixa a gente cansado cansado. Eu durmo na faixa e todos os motoristas esperam. Aqui é proibido buzinar.

BRASÍLIAMAR VI (A João Gabriel Bahiano-Brasiliense)

Que filho nunca sonhou dormir com a mãe? Eu fecundei Brasília e meus filhos prosperaram e Brasílias menores cresceram. E minha infância é toda sua. Com amor com afeto com carinho eu imagino esta minha cidade como um berço e durmo acalentado por cantigas de ninar: boi boi boi, boi da cara azul! E tenho fases: há fases de frutas, há fases de chaveiros, há fases de fezes, há fazes de absoluta imobilidade. Uma música absoluta sopra da ponta da asa: pressinto acontecimentos. Mas fecho os olhos e lembro de quando Brasília era apenas uma loba. Meu irmão gêmeo deitado mamava na mamãe. Peguei uma pá. Plantei uma árvore: e todas as árvores entenderam o plano. E todas as árvores para todo o sempre estão no exato lugar. Elas são tão exatas como as siglas, as placas que indicam de onde évem. Agora, as tesourinhas, nunca sei para onde vão. Tesourinhas levadas: etéreas, veladas, aéreas.

BRASÍLIAMAR VI (A João Gabriel Teixera)

Há um desejo no divã, sádico, possível, pulsão de morte que irrompe no anseio de imaginar o desejado. Falo. Falo. Reconhecer a capital do reino e imaginá-la uma outra coisa seria apontar para o desejo de salvaguarda. Através do túnel central maquetes, museus arquitetônicos, câmeras na mão entelam o atlas interior de cada ser. Na visão, anterior ao sonho, o devaneio é antecedido pelo símbolo: uma quadra condiciona a outra, uma via nunca está solitária porque sabe que a sua reta, que nunca se cruza com outra, está lá, exatamente onde foi riscada. Uma menina condiciona o menino pedro de olhos pretos, uma pequena nuvem, mas muito pequena mesmo, condiciona a andorinha. Andorinha pequena do meu viver cai aqui na minha mão – cai cai andorinha andorinha luz menina luz balão. Brasília é assim: deito pra falar dela e falo de mim.

BRASÍLIAMAR IV (A Nicolas Behr)

Toda cidade tem um plano? Ou esta ou aquela? Não sei, não sei. Aqui todos os dias um desenhista pega sua caneta nanquim, seu papel de seda, sua luneta de ver estrelas de dia e sai para passear. Sendo plano o papel no chão. Sendo tempo a tinta mancha a mão. Redesenha. Desse desenho a cidade nasce todos os dias e dá lições de escrever. Cada pessoa amanhece com uma palavra. Cada palavra é única como o sol, o azul, o flamboyant, o gramado. Todos os dias Brasília tem um plano, mas ninguém sabe. No entanto, mal rompe a manhã: uma partitura, um álbum de fotografia, cartões-postais-digitais tudo isso na banca da esquina. Em Brasília toda esquina tem uma banca. As esquinas são invisíveis, as bancas não!

BRASÍLIAMAR III

Quando se visita pela primeira vez a última capital do reino, um fato irrompe: a consonância entre as cidades e a busca existencial da felicidade, latente em toda narrativa vivida, pode ser alcançada. Para isso, basta ouvir uma menina que conversa com a mãe no celular sobre os resultados do exame de sua gravidez, um cachorro solitário latindo incansavelmente atrapalhando o tempo, um louco conversando sozinho sobre meninos e lobos, uma veraneio vascaína com um bando de garotos de chuteiras e a moça do corpo molhado que sorri porque o vento é bom e tudo é bom quando o vento da chuva cai na cidade. Hoje chovo, amanhã não.

BRASÍLIAMAR II

O candango sente inveja do que não viveu e do que gostaria de ter vivido, numa espécie de memória do imaginado. Brasília é assim: diz o tempo todo o que você deve fazer e o que você não deve fazer. Daí o homem começa a andar e chega. Logo alguém sopra sua fala e o homem fala. Um carro pára na faixa e um balão amarélio sai pela janela e corto o eterno teto azulejal. Uma senhora de decote modernista funda a primeira esquina. A cidade afirma que todo aquele que chega deseja chegar a uma cidade, recordando ou não as já conhecidas. Ela contém o passado porque é a capital do futuro. Brasília não tem ponto final. Não precisa pedir licença, pode entrar!

BRASÍLIAMAR I

Brasília é uma tatuagem no rosto da menina. Gosto de ti assim: polar. Comosgraficamente voando para alcançar o sol. Suas asas? Concretas pesando em meu corpo. Pecando sob meu espírito. Mas a leveza de sua bela-beleza alçou de par em par alturas para fora do azul. Além, ela é ela mesma: rosal lavarinta demoníaca. Paredes aladas que fogem na direção. Solar, luminar, livre, a cidade olha nos olhos do astro e se sente luminada. Lux. Ontem eu não vi Brasília, mas ela estava dentro de nós. Ela estava no meio de nós. Ela era nossa alma: assim, simples, alada, amada, mulher.